A nova face do operário
13.02.2007
Ele tem formação superior, ganha melhor e fica mais tempo no emprego -- é o que mostra um estudo exclusivo de EXAME Por Suzana Naiditch
O gaúcho Lindomar Machado representa uma espécie em extinção na indústria brasileira. Aos 50 anos, o operário da linha de produção da fabricante de carrocerias Randon mal sabe ler, não concluiu o Ensino Fundamental e faz hoje rigorosamente o mesmo que há 23 anos, quando foi contratado. Durante 8 horas por dia, solda carrocerias, exercendo uma função que lembra o célebre personagem de Charles Chaplin no filme Tempos Modernos. Seu filho, Fernando, de 23 anos, é a personificação de por que não há no futuro lugar para profissionais como Lindomar. Ele também é operário. Também trabalha na Randon. Mas sua bagagem educacional é infinitamente maior. Fernando cursa atualmente faculdade de administração de empresas, freqüenta aulas de inglês e participou de vários treinamentos técnicos oferecidos pela companhia. Graças à sua formação, pôde abandonar o trabalho mais bruto e operar máquinas sofisticadas na linha de produção. Apenas três anos após entrar na Randon, Fernando passou a ganhar o mesmo salário que o pai -- e, segundo seus superiores, não tardará para que ganhe duas ou três vezes mais. "Pessoas como Lindomar são de um tempo em que operários entravam e saíam de uma empresa fazendo absolutamente a mesma coisa e ganhando o mesmo salário", diz Maria Tereza Casagrande, executiva de recursos humanos da Randon. "Esse tempo, porém, está acabando."
A transformação do chão de fábrica |
Principais diferenças entre o operário de 20 anos atrás e o de hoje(1) |
A formação melhorou |
Em 1985 |
7% tinham terceiro grau completo |
Hoje |
35% têm terceiro grau completo |
Eles ganham mais |
Em 1985 |
12% recebiam mais de dez salários mínimos |
Hoje |
33% recebem mais de dez salários mínimos |
E ficam mais tempo no emprego |
Em 1985 |
36% ficavam mais de cinco anos no emprego |
Hoje |
46% permanecem mais de cinco anos no emprego |
(1) Pesquisa elaborada com base na lista das 150 Melhores Empresas Para Trabalhar
Fonte: Unicamp |
As notórias diferenças entre as duas gerações da família Machado simbolizam à perfeição uma mudança radical observada no chão de fábrica das empresas brasileiras -- a face do operário nacional transformou-se nos últimos 20 anos. Para melhor. Segundo estudo encomendado por EXAME a Marcio Pochmann, professor da Universidade de Campinas e um dos maiores especialistas brasileiros em trabalho, hoje o operário nacional estuda mais, ganha melhor e passa mais tempo no emprego. A mudança mais dramática é em seu grau de formação. Em 1985, apenas 7% dos funcionários da linha de produção das 150 melhores empresas brasileiras para trabalhar tinham completado o Ensino Superior. Hoje, são 35%. A elevação na escolaridade trouxe um aumento significativo nos ganhos. Duas décadas atrás, apenas 12% dos operários recebiam mais que dez salários mínimos. Hoje, um terço recebe salário superior a 3 500 reais, o que os coloca no topo da pirâmide social brasileira. "Essa foi a maior revolução que o país já viveu em suas fábricas", diz Pochmann.
Randon As duas gerações da família Machado simbolizam as transformações no perfil do operário nos últimos 20 anos. Lindomar Machado (à esquerda), de 50 anos, nunca completou o Ensino Fundamental. Ele trabalha na fabricante de carrocerias Randon, em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha, há mais de duas décadas, sempre na mesma função de soldador de carretas. Seu filho, Fernando, de 23 anos, seguiu caminho oposto. Fez cursos técnicos na empresa e decidiu aprender inglês. À noite, cursa administração de empresas numa universidade privada, com subsídio da Randon.Ao contrário do pai, cujo trabalho exige força, ele opera equipamentos automatizados, que exigem conhecimento. Pai e filho recebem o mesmo salário — e Fernando está na empresa há apenas três anos.
A EVOLUÇÃO TECNOLOGICA transformou praticamente todas as profissões nos últimos 20 anos. Todos foram forçados a entender o funcionamento da internet e a adequar-se à rapidez nas comunicações. Médicos, engenheiros, advogados, banqueiros -- uma lista interminável. Quando se analisa o que ocorreu no chão de fábrica das companhias brasileiras, porém, percebe-se que essa transformação atingiu patamares incomparáveis. Há um motivo principal para isso: as peculiares (e colossais) mudanças por que passou a economia brasileira de 1985 para cá. Observados em separado, os dois momentos revelam países radicalmente diferentes. O primeiro tinha uma economia fechada e instável, reserva de mercado para negócios ineficientes e um ambiente competitivo em que poucas empresas se arriscavam a vender os produtos nacionais no exterior. O segundo tem economia aberta (menos aberta do que deveria, vale lembrar), moeda estável e empresas que se viram forçadas a disputar o mercado global com seus concorrentes. Essas mudanças trouxeram ao ambiente empresarial a obrigação de elevar seu padrão de produtividade para sobreviver. Com a importação de máquinas facilitada pela abertura comercial, as companhias compraram equipamentos que substituíram o trabalho braçal e repetitivo dos operários nas fábricas. O que se viu, então, foi uma elevação notável nos índices de produtividade. Em 1985, cada trabalhador da indústria automotiva produzia oito veículos por ano. Hoje, produz 30 (nas fábricas mais modernas, chega a 60). A produtividade das siderúrgicas quadruplicou no período. Na indústria têxtil, quintuplicou -- e números semelhantes são observados em cada um dos setores da economia.
Salton Valcir Toffoli, de 58 anos, é o cantineiro-chefe da vinícola Salton, em Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha. Aprendeu o ofício na prática, em barricas de madeira.Agora passa por uma situação constrangedora: comanda um grupo de jovens na faixa dos 20 anos, com formação superior ou técnica em enologia, que sabem o que o chefe desconhece — operar os modernos tanques de aço inoxidável, controlados por computador.
Nesse processo, os operários que exerciam funções menos complexas viram seu emprego simplesmente sumir -- e quem sobrou passou a exercer funções que lembram pouco a dos torneiros mecânicos e soldadores, tão comuns nas linhas de produção dos anos 70 e 80. Hoje, o operário é uma espécie de minigerente, cujas funções mudam a cada inovação tecnológica ou reorganização dos processos de produção. "Nesse ambiente, as empresas precisam de trabalhadores que pensem e interpretem o que lêem e vêem", diz Denise Asnis, responsável pela área de recursos humanos e educação corporativa da Natura. "Precisam ter capacidade de abstrair, entender, somar, dividir." Como as empresas eliminaram um sem-número de funções de supervisão (sempre com os olhos voltados para o corte de custos), o novo operário ganhou altas doses de responsabilidade pelo que acontece em seu departamento. Recentemente, a Natura acabou com a função de líder nas fábricas e entregou a gestão das unidades aos próprios operários. Para adaptar-se à nova realidade, a operária Maria Soares de Camargo, de 32 anos, teve de cursar faculdade de administração de empresas para familiarizar-se com os mais modernos mecanismos de gestão. No novo cargo, seu salário pode dobrar. Todos os envolvidos têm clareza quanto ao nível acadêmico da maioria das universidades freqüentadas por operários como Maria Soares -- no mínimo duvidoso. "Mas, mesmo com cursos ruins, freqüentar uma universidade ajuda o operário a ter experiência de vida, de relacionamento e a estar num ambiente de discussão, o que já é alguma coisa", diz Denise.
Natura Quando começou a trabalhar como operária na Natura, Maria Soares de Camargo tinha apenas 16 anos e o Ensino Fundamental. Dentro da empresa, completou o Ensino Médio e tornou-se líder de produção. Em julho do ano passado, essa função foi extinta. Para ser promovida a analista, era preciso ter curso superior — desde outubro de 2006, ela cursa administração de empresas.
O esforço para educar funcionários tornou-se, necessariamente, um hábito. Vinte anos atrás, contratar operários era tarefa relativamente simples: bastava colocar um aviso na porta e recrutar os primeiros que aparecessem. Com as novas funções, o que era simples tornou-se uma complicação. É preciso encontrar, em meio à multidão de trabalhadores com formação precária lançados no mercado a cada ano, aqueles com potencial para encaixar-se nos padrões atuais. Note bem: com potencial. São raros os profissionais que já vêm prontos, o que força as empresas a investir o dinheiro do acionista em treinamento e bolsas universitárias. Companhias como Embraco e Saint-Gobain investem anualmente cerca de 0,5% do faturamento na formação de seus operários. Até os anos 80, parte do esforço das empresas concentrava-se na tarefa de alfabetizar funcionários. Hoje, não saber ler e escrever significa simplesmente a exclusão do mercado -- mesmo para as tarefas mais simples. É isso que explica o descompasso entre vagas abertas e filas de desempregados tentando se colocar. Encontrar o profissional adequado é tão difícil que muitas empresas simplesmente desistem e deixam as vagas abertas. A Natura acaba de eliminar 1 500 candidatos com Ensino Médio completo num processo de seleção -- os testes mostraram que são analfabetos funcionais. Ou seja, sabem ler, mas não entendem o que lêem. A Saint-Gobain demitiu 300 analfabetos do chão de fábrica por considerar que eles não tinham condições mínimas de operar os novos equipamentos da linha de produção. "A mudança foi obrigatória para manter a empresa competitiva", diz Raul Navarro, diretor de recursos humanos da Saint-Gobain.
Embraco Antônio do Prado, operário da catarinense Embraco, fabricante de compressores, já esteve duas vezes na China. Foi enviado pela companhia para treinar trabalhadores da fábrica que a empresa tem naquele país. Há 16 anos na Embraco, Prado começou como auxiliar de produção e já fez mais de 800 horas de cursos oferecidos pela empresa.
TAMANHO RIGOR NA CONTRATAÇÃO e na formação dos operários deve-se a seu papel crucial no desempenho das empresas. Hoje, cada companhia investe na construção de uma linha de produção que a coloque num patamar superior em relação à concorrência. Ter profissionais que dominam os métodos e a linguagem dos negócios é visto como essencial. A maior prova dessa evolução pode ser encontrada nas multinacionais brasileiras, companhias que compraram ou abriram fábricas no exterior. Até recentemente, essas empresas enviavam para fora do país apenas um punhado de executivos, que comandariam a mão-de-obra local. Hoje, companhias como Votorantim Cimentos, Camargo Corrêa, Ambev e Gerdau expatriam operários para administrar suas linhas de produção internacionais, implementar seus sistemas e treinar os trabalhadores locais. O catarinense Antônio do Prado, funcionário da Embraco, líder mundial na produção de compressores, foi enviado duas vezes à China para passar adiante a cultura do chão de fábrica na subsidiária. "Nunca tinha viajado de avião, muito menos saído do Brasil", diz Prado. A primeira viagem aconteceu em abril de 2006. Na comitiva de 15 pessoas, seis eram operários como ele. "Implementar nossas técnicas de manufatura na China foi extremamente difícil."
É consenso entre os especialistas que há inúmeros passos a dar na evolução da classe operária brasileira. Essa transformação ainda está pela metade, o que gera situações constrangedoras nas empresas. É o caso da Salton, maior vinícola do país. Seu chefe da linha de produção, Valcir Toffoli, de 58 anos, cresceu na hierarquia de uma empresa que tinha métodos de produção parados no tempo. O vinho era fabricado artesanalmente, em antiquados tanques de madeira. O choque causado pela enxurrada de vinhos importados, nos anos 90, fez com que essa empresa deixasse de existir. Nos últimos cinco anos, a Salton modernizou sua fábrica, comprou tanques de aço inox, e a produção de vinho passou a ser controlada por meio de toques na tela do computador -- que faz tudo que os operários antigos faziam. A produtividade triplicou. "Deixei de estudar há 40 anos, não tenho capacidade para lidar com informática", diz Toffoli. Seus subordinados são exponencialmente mais bem formados. Na faixa dos 20 anos, dominam o manuseio das máquinas, estão concluindo cursos de enologia e discorrem com naturalidade sobre os processos microbiológicos da vinificação. Enquanto o chefe, com mais de duas décadas de casa, ganha cerca de seis salários mínimos, os garotos da Salton já ultrapassaram os quatro salários. E acabaram de começar.
A QUALIDADE E O PREÇO da mão-de-obra estão entre as variáveis mais importantes na decisão de investimento das empresas -- mais que isso, ajudam a explicar a bonança econômica de algumas economias e a estagnação de outras. A China cresce estrondosamente, em boa medida porque o custo de seus operários é ainda baixíssimo. Um funcionário da indústria automotiva chinesa custa 2 dólares por hora, ante quase 41 dólares de um operário alemão. Mesmo que tenha má formação e a produtividade seja baixa (como é), o custo compensa o investimento por lá. E, embora seja altamente produtivo, o operário alemão é caro demais, o que leva as montadoras a abrir fábricas no Leste Europeu e a fechar suas linhas de produção na Alemanha. Na Coréia, o investimento em educação formou uma classe operária extremamente produtiva e não tão cara quanto a alemã. De acordo com um estudo recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), um trabalhador coreano produz em média duas vezes mais que o brasileiro -- que, nem tão barato quanto o chinês nem tão eficiente quanto o coreano, coloca o país numa espécie de meio-termo nefasto para as empresas. "Para piorar a situação do Brasil, as novas gerações chinesas estão recebendo mais educação que as novas gerações de brasileiros e, daqui a alguns anos, esse esforço vai torná-los mais qualificados que nós", diz o economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade de Princeton.
Segundo os especialistas, é na direção da Coréia que o Brasil deve seguir: um investimento pesado em educação, especialmente para crianças e jovens, colocaria à disposição das empresas funcionários capazes de sustentar ainda mais seus investimentos em tecnologia e tornar o país mais competitivo. "É urgente melhorar a qualidade de nosso ensino, porque os alunos brasileiros têm desempenho muito ruim se comparados a alunos de países desenvolvidos ou até mesmo a outros emergentes", diz Scheinkman. "Só assim os países enriquecem." O trabalhador brasileiro já passou por uma transformação radical nos últimos 20 anos -- é um passo considerável. A dúvida é se o mundo esperará outros 20 anos pelas mudanças que ainda precisam acontecer.
Fonte: Portal EXAME
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